Nascido em Tápà, cidade que faz fronteira com o rio Níger, Xangô era filho de Oranmíyàn e Torosi, filha de Elenpe, rei de Tápà. Retornando mais tarde para a sua região, Oranmíyàn fundou a antiga cidade de Oyó, localizada próxima ao monte Àjàkà.Xangô passou sua infância e juventude em Tápà, mais tarde foi para outras cidades, conquistando uma delas, chamada Kosso, lá assumiu a condição de líder de seu povo como Oba (rei). Mas o sonho de Xangô era assumir o reinado de Oyó, que nessa época tinha como regente Dàda Àjàkà, seu irmão mais velho, que não estava à altura do cargo, por ser passivo e de certa forma indolente. Xangô invadiu Oyó e destronou o irmão, que se instalou na cidade de Ísele. Passou a ser o 3° Aláàfin (Título dos soberanos) de Oyó, permanecendo no trono durante sete anos, dando motivos a inúmeras histórias onde são reveladas suas façanhas e seus casos de lutas e paixões. Segue uma delas:
Xangô, como soberano de Oyó, assumiu o papel de guerreiro, pois essa fase, na vida do povo yorubá era dedicada a conquistas, e com isso conseguiu que seu reino se expandisse a ponto de se tornar o soberano legítimo reconhecido por todos. Seus exércitos haviam dominado todos os seus opositores e assim, todos os demais reis reconheceram a sua supremacia. Entre os guerreiros que participavam dos exércitos de Xangô, dois de destacavam: Tìmì e Gbonkaá Ébìrì, que eram conhecidos e respeitados por todos. Suas vitórias eram sempre lembradas, e isso passou a incomodar Xangô que dizia: “Sou o aláàfin de Oyó, o Oba dos Obas, e apesar de meus exércitos conquistarem tudo, não é só a mim que o povo elogia”. Pensou e começou a imaginar uma maneira de se livrar da força que os dois tinham juntos ao povo de Ifé.
No dia seguinte, enviou um mensageiro à casa de Tìmì, pedindo que comparecesse no palácio. Tìmì atendeu prontamente ao pedido e se fez acompanhar por um tocador de atabaque, cantando poemas em seu louvor. Uma multidão de pessoas o seguiu, algumas delas dançando, pois esta era a forma como as pessoas agiam quando um grande herói de deslocava de um lugar para outro. Xangô sentia-se agradecido pela lealdade de seu guerreiro nas batalhas, mas o ciúme e a gratidão conflitavam dentro dele. Assistir ao espetáculo das várias pessoas celebrando as grandes ações de Tìmì fez o coração de Xangô ficar endurecido e assim, decidir mandar Tìmì embora.
Com esse pensamento, Xangô disse a Tìmì: “Na cidade de Edé as coisas não andam bem. Lá a população não demonstra o respeito necessário a Oyó. Vá, estabeleça a ordem e oprima aqueles que buscam a desordem. Permaneça lá e seja a autoridade de Edé”. Tìmì agradeceu a confiança e disse: “Grande Xangô, eu farei o que me pede. Edé voltará a ordem e será submissa a Oyó”. Em seguida foi para casa a fim de se preparar para a viagem. Levou seus amuletos no pescoço e nos braços, pegou o arco e as flechas flamejantes que usava nas batalhas e que o faziam tornar-se invencível, montou em seu cavalo, e com alguns guerreiros, iniciou sua viagem. Xangô pensou: “Agora me livrei de um dos heróis que, certamente, encontrará seu fim tentando conquistar Edé”. Entretanto as notícias começaram a chegar informando que Tìmì e seus companheiros haviam lutado e derrotado os melhores guerreiros, trazendo a ordem à cidade e à todas as regiões fronteiriças. O nome de Tìmì havia se tornado maior do que era antes e a cidade de Edé desenvolveu-se como potência militar poderosa, repercutindo fortemente em Oyó, deixando Xangô muito aborrecido.
Assim começou a arquitetar um grande plano. Mandou chamar o outro herói, Gbonkáà, e instruiu-o da seguinte forma: “Vá até Edé, onde Tìmì governa. Quando ele partiu daqui, prometeu tornar a cidade submissa a Oyó. Ao invés disso, ele a fez altiva e vaidosa, como se nossa cidade fosse uma aldeia sem nenhuma importância. Vá e derrote-o. Traga-o de volta, usando os seus poderes”.
Ouvindo tudo com atenção, Gbonkáà disse que não tinha raiva de Tìmì. E completou dizendo a Xangô: “Grande aláàfin, eu ouço o que quer que eu faça, mas lembre-se de que eu e Tìmì combatemos juntos. A dor de um sempre foi a dor do outro. Quando um de nós se feria, o outro ajudava. Aliviamos a nossa sede no mesmo copo. Como posso lutar contra Tìmì? Um de nós certamente morrerá”. Xangô respondeu que já havia pensado nisso e elogiou o poder de Gbonkáà, dizendo que ele era muito eficaz e que iria vencer sem causar nenhuma morte. O que Xangô tinha em mente era a certeza de que, quando os dois heróis se encontrassem em combate, certamente um deles morreria, e assim, ficaria mais fácil para ele enfrentar apenas um.
Gbonkáà afirmou: “Eu irei até Edé e conversarei com Tìmì como se fala com um companheiro de muitas batalhas. Eu o convencerei a voltar”. Dizendo isso, seguiu para a sua casa, carregando consigo seus talismãs. Pegou o seu chifre de antílope, no qual mantinha um de seus grandes poderes ligados a encantamento. Depois partiu, tendo à sua frente o tocador de atabaques cantando seus feitos e glórias.
Algum tempo depois, o povo de Edé começou a ouvir os cânticos e os sons do atabaque. Viram com admiração a chegada de Gbonkáà. Ele era forte e violento, e seu corpo estava quase todo coberto com sacolas de couro contendo a força de seus poderes. Na mão trazia uma lança e sob seu escudo estavam as marcas tradicionais de seus feitos. O povo correu até a casa de Tìmì, gritando que Gbonkáà havia chegado e estava trajando roupas para uma batalha. Tìmì o aguardou na porta de casa. Gbonkáà aproximou-se e disse: “Tìmì, meu companheiro de guerra, Xangô enviou-me até aqui para levá-lo de volta a Oyó. Peço que prepare-se para a viagem”. Tìmì respondeu: “Gbonkáà, você que percorreu comigo muitas regiões, está de volta a Edé; porém, não posso voltar com você, pois sou agora o Oba desta cidade. Quando Xangô mandou que eu viesse para cá, ele não disse para voltar. Portanto, não poderei acompanhá-lo”.
O diálogo estava sendo observado por toda a população, já preocupada com os acontecimentos. E, nesse clima, Gbonkáà respondeu: “Meu amigo, devo lhe dizer que Xangô me orientou para que no caso de você decidir não vir, deverei levá-lo à força ou lutar para decidir o caso”. Tìmì surpreendeu-se: "Gbonkáà, você teria coragem de usar suas armas contra mim? Eu sou seu companheiro e amigo de muitas batalhas". Embora lamentando, Gbonkáà foi irredutível: "Infelizmente terá de ser dessa maneira. Prepare-se, vamos lutar". Tìmì foi preparar-se. Cobriu-se com seus preparados e a proteção de seus talismãs. Em suas mãos, seu Ofá Iná, as flechas flamejantes.
O povo de Edé suplicava aos seus heróis: "Vocês são como irmãos. Pensem nisso e não lutem!" Mas Tìmì disse: "Afastem-se e não cheguem perto de nós". Não havendo outra solução, recuaram. Os tocadores de atabaques dos dois heróis começaram a cantar louvores. Tìmì colocou a sua flecha de fogo no arco, em posição de ataque. Gbonkáà atento, apenas segurou o seu chifre de antílope, onde trazia o seu poder de encantamento. E, enquanto fitava Tìmì, começou a recitar um determinado ofo (reza de encantamento), que terminava com as seguintes palavras:
Ewé ti a ba já lówó òtún
(Folhas apanhadas do lado direito)
Òtún níígbé
(São conservadas na mão direita)
Ewé ti a bá lówó òsì
(Folhas apanhadas do lado esquerdo)
Òsì níígbé
(São conservadas na mão esquerda)
A sùn fonfon ni tígi àjà
(Uma trepadeira fica sempre imóvel)
Ìwo, Tìmì! Sísùn ni kóosùn!
(Você, Tìmì! Fique imóvel, durma, não acorde!)
Imediatamente Tìmì entrou em sono profundo. Suas armas caíram de suas mãos e Gbonkáà aproximou-se dele com sua lança suspensa. Vendo Tìmì imóvel, abaixou-se e pediu ao povo para colocá-lo em cima de um cavalo, levando-o de volta para Oyó. Assim que chegou, foi direto para o palácio de Xangô e disse: "Nós nos preparamos para a luta, mas antes que ele pudesse atirar sua flecha eu o coloquei para dormir". Xangô pediu que o acordasse e, quando Tìmì levantou, o povo começou a ridicularizá-lo com frases debochadas e risadas. Gbonkáà dispersou o povo e seguiu calmamente para casa.
Xangô estava muito irritado, pois os dois heróis continuavam em Oyó. Pensou no assunto e mandou chamar Tìmì. "As coisas não estão bem", disse-lhe. "Pensei que você fosse derrotar Gbonkáà, mas aconteceu o contrário. Ele o fez dormir com o poder que possui e agora o povo zomba de você. Você não pode ficar ouvindo o povo humilhá-lo diariamente. Isso não pode continuar. Se você desejar, anunciarei uma nova luta entre vocês". As palavras tocaram fundo em Tìmì, que estava sufocado pela humilhação. Então, ele falou: "Sim, eu me encontrarei mais uma vez com Gbonkáà, e a morte deverá vir para um de nós". E um novo encontro foi anunciado entre os dois guerreiros. Lutariam até a morte na praça principal de Oyó.
Na manhã seguinte, todos já estavam reunidos conforme o desejo de Xangô. Os dois guerreiros, face a face, com seus tocadores cantando vitórias. Havia uma grande agitação. Tìmì atirou uma flecha flamejante de seu arco e, no exato momento em que a flecha iniciou sua trajetória, Gbonkáà apontou seu chifre de antílope para o Leste. A flecha então tomou o rumo do Leste. Tìmì lançou outra flecha flamejante, e Gbonkáà apontou seu talismã para o Oeste. E a flecha mudou de rumo novamente. Novas flechas foram atiradas, mas sempre desviadas pelo poder do talismã de Gbonkáà, contido dentro do chifre de antílope. Em meio a essa ação de defesa, Gbonkáà começou a entoar cânticos de encantamento para imobilizar Tìmì, e foi o que aconteceu. Tìmì caiu no sono, imóvel e em sono profundo. O povo fez alarido e os tocadores cantaram a vitória de Gbonkáà, que em seguida, despertou Tìmì e se afastou do combate.
O resultado da contenda, mais uma vez, não agradou Xangô porque ambos os heróis ainda permaneciam vivos. Mandou então, chamar Gbonkáà e lhe disse: "A árvore foi curvada, mas ainda continua a crescer. Você tem curvado Tìmì, mas ele ainda vive; portanto, você deverá lutar novamente".
Furioso com o que ouvia, Gbonkáà respondeu a Xangô: "Duas vezes eu lutei contra Tìmì para satisfazê-lo e duas vezes eu o derrotei. Isso não lhe tem agradado. Suponho que você nunca ficará satisfeito enquanto nós dois permanecermos vivos. Muito bem, lutarei a última vez com Tìmì. Depois, a luta será entre você e eu. Um de nós deverá deixar Oyó para sempre".
Deste modo, os dois heróis se defrontaram mais uma vez em combate. A multidão reuniu-se novamente e os músicos tocaram seus cânticos. Xangô sentou-se em uma cadeira no formato de um pilão, com uma pele de leopardo sobre ela. Uma nova agitação envolveu todos quando a luta começou. Como aconteceu anteriormente, Gbonkáà dominou Tìmì com seu encantamento e o fez adormecer. Com sua espada ele cortou a cabeça de Tìmì e a jogou aos pés de Xangô, dizendo: "Aqui está a cabeça que tanto querias". Xangô levantou bastante irritado e ordenou que seus guardas agarrassem Gbonkáà e matassem-no utilizando o fogo.
Armaram uma enorme fogueira, amarraram Gbonkáà com cordas fortes e lançaram-no às chamas. O povo chegou próximo à fogueira para ver o herói morrer. Mas, para a surpresa de todos, viram-no levantar-se sobre o fogo e fixar os olhos em Xangô. Quando as cordas que o atavam haviam sido consumidas pelo fogo, ele andou através das chamas sem que elas o queimassem. O povo de Oyó que a tudo assistia, ficou aterrorizado e começou a se dispersar. Somente Xangô e sua mulher, Oyá, permaneceram no local. Gbonkáà aproximou-se de Xangô, mostrou seu corpo sem uma queimadura sequer e disse: "Agora tudo acabou para você em Oyó. Deixe a cidade dentro de cinco dias e nunca mais volte". Como represália, Xangô abriu sua boca, e uma enorme chama envolveu Gbonkáà; este, porém, resistiu a ela, não lhe causando qualquer dano. Vendo que nada poderia derrotar Gbonkáà, Xangô retirou-se para seu palácio.
Quatro dias haviam se passado, e o povo de Oyó cantava canções de louvor a Gbonkáà, que agora era seu novo líder. Ao anoitecer do quarto dia, Xangô demonstrou vontade de deixar a cidade sem luta, num exílio voluntário. Na escuridão da noite, acompanhado por Oyá e seus criados fiéis, seguiu viagem em direção à cidade de Tápà, com o intuito de ficar com a mãe. Por sete anos Xangô havia governado Oyó, dando-lhe grande esplendor de conquistas, e agora se retirava triste e abatido por ver o povo se voltar contra ele em detrimento de Gbonkáà, esquecendo-se de tudo que havia feito por todos.
Pelas florestas seguia a comitiva de Xangô, que raramente falava. Estavam todos angustiados com os acontecimentos. Em meio à viagem triste e silenciosa, Xangô começou a perceber a ausência de seus companheiros, a tal ponto que, em certos trechos, constatou que apenas Oyá havia permanecido ao seu lado. Os demais haviam se dispersado, tendo alguns voltado para Oyó. Ao deparar-se com essa situação, Xangô fitou Oyá e lhe disse: "Ko kin burú tìtí ki o ma enìkan mò ni". (Por pior que alguém seja, há sempre quem goste da gente).
Dizendo isso, pediu que Oyá o aguardasse no local e retirou-se para o interior da floresta. Lá, pegou uma corda, amarrou em uma árvore denominada àyàn e enforcou-se. Oyá, que esperava-o, ao perceber que ele demorava, resolveu ir até o local onde ele poderia estar. E lá o encontrou enforcado. Ficou desesperada e voltou para Oyó, gritando que Xangô havia se suicidado. Os adversários dele rejubilaram-se e fizeram festas pelo acontecido, dizendo: "Oba so! Oba so!", que significa "o rei se enforcou". A partir daí, começaram a humilhar e a brigar com os adeptos de Xangô.
Oyá, mais calma, foi procurar os Mógbà, auxiliares diretos de seu esposo, e com eles retornou à floresta. No local em que deveria estar o corpo de Xangô nada foi encontrado. Ouviram, porém, a voz dele vinda de dentro da terra, dizendo que havia se transformado em Orixá e que deveriam voltar para o povoado, pois todos teriam uma prova de seu poder.
De volta, relataram o que tinham visto e escutado, mas ninguém deu importância e continuaram a festejar o acontecido. Até que, de repente, o céu começou a escurecer acompanhado de fortes ventanias; raios caíam em todas as direções e atingiam as casas da cidade, incendiando-as. Todos se assustaram com o que estava acontecendo, não sabendo explicar as razões da mudança repentina da natureza. A tempestade envolveu Oyó e fez as rochas se deslocarem, destruindo caminhos e causando mortes.
Em meio a todo esse clima, o Babalawo da cidade foi convocado para descobrir a causa de tudo. "É Xangô", disse ele. "Ele está zangado pela afronta que recebeu de seu povo". Em seguida, pediu que trouxessem oferendas para serem preparadas: aves, carneiro, azeite de dendê e orógbó. Seguiram para o local onde sabiam que ele havia morrido e lá depositaram as obrigações. Ao mesmo tempo olharam para o céu e viram o sinal de aceitação de Xangô, surgindo o seu símbolo de formato similar ao machado de dois gumes e denominado oxé iná, formado pelos raios que brilhavam no espaço. Então, todos começaram a gritar: "Oba kò so! Oba kò so!" ("O rei não se enforcou!"), que passou a ser frase que simbolizava a fidelidade a Xangô e que deveria ser sempre repetida. A partir desse momento, a natureza se acalmou com aquele ato de devoção e submissão.
O local se tornou desde então um santuário popular de Xangô, nos arredores da atual Oyó, onde os sucessores dos reis e descendentes do Orixá são tradicionalmente coroados. A árvore - igi àyàn - passou a representar o caminho que conduziu Xangô à divinização como Orixá, em cuja base são depositados os sacrifícios e as oferendas. Quanto à Oyá, companheira até os últimos momentos de Xangô, então sozinha, resolveu retornar a Tápà, mais precisamente à cidade de Irá, sua terra de origem, lá desaparecendo no interior da terra, surgindo depois sob o encanto dos ventos predecessores das tempestades, dos raios e trovões. Em sua memória, o povo yorubá associou-a ao rio Níger, cujo delta, formado por nove cursos d'água, reverencia seus nove filhos.
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